"O complexo de esquerda" por João César das Neves (DMS)
Permitam um desabafo gostava de ser de esquerda.
Quando ouço os líderes falar sobre os seus objectivos, sinto uma identificação sincera e atenta. A sua preocupação declarada são os mais pobres, os que menos têm e menos podem.
Que propósito político é mais digno e elevado? Reformados, imigrantes, operários, trabalhadores em geral são a sua luta, de uma forma que nenhum outro partido iguala.
Então não tenho dúvidas sou de esquerda.
Depois passam aos meios para esse objectivo, e aí começam as divergências. Divergências que são entre esses meios e os interesses que dizem defender.
Existem cinco grandes contradições na esquerda.
Primeiro, uma questão filosófica. Um pobre é sempre pragmático. A necessidade aguça o engenho e os carenciados são astutos gestores dos magros haveres, com uma lucidez e imaginação que ultrapassa a dos grandes empresários.
Mas não existem forças políticas mais dogmáticas que as de esquerda.
Presas a conceitos abstractos e modelos arcaicos, ligam à retórica ideológica e não à eficácia concreta.
O que interessa são "direitos adquiridos", "conquistas inalienáveis", mesmo que isso atrase o desenvolvimento e aumente a pobreza e o desemprego.
Segundo, uma questão económica. Na análise económica os disparates são esmagadores.
Dominados por teorias obsoletas e desqualificadas, insistem em chavões populistas, em geral desmiolados, sem qualquer eficácia na defesa dos reais interesses dos mais pobres.
É incrível como o modelo intelectual da esquerda continua a responder à situação industrial de Oitocentos.
Os exemplos aqui são miríade.
A imperiosa luta contra o capital e a visão conflituante da empresa são impostas independentemente dos reais interesses dos trabalhadores.
Essa fúria espanta o capital nacional e externo e contribui poderosamente para a paralisia e atraso.
A defesa da intervenção do Estado, toda paga com impostos dos trabalhadores, tem criado e mantido enormes desperdícios e abusos.
A ignorância das radicais mudanças recentes, por exemplo na natureza do capital, leva-os a atacar a poupança dos pobres, que compõem os famigerados fundos mobiliários que popularizaram o mercado financeiro.
Estas não são questões de opinião. São simples erros técnicos.
Terceiro, uma questão mundial. A esquerda nasceu aberta e internacionalista. Enfrentando a tacanha cobiça nacional das potências, afirmava uma visão transversal e solidária da humanidade.
Depois deixou que esse internacionalismo fosse capturado pelo interesse nacional de potências particulares, URSS ou China, pervertendo a generosa inspiração inicial.
Agora, paradoxalmente, virou proteccionista numa luta míope e retrógrada contra a globalização, mais uma vez sem atenção aos reais interesses dos menos favorecidos.
A abertura dos têxteis chineses, por exemplo, beneficiaria muito todos os pobres nacionais, que se vestiriam muito mais barato. Porquê insistir na manutenção de indústrias obsoletas e dispendiosas?
Em quarto lugar aparece a recente opção da esquerda na luta contra a família.
Depois do seu falhanço económico, que fez esquecer velhos mitos da "sociedade sem classes" e "ditadura do proletariado", passou a promover o aborto, eutanásia, uniões de facto, prostituição, casamento e adopção por homossexuais, etc. Estas não são causas dos pobres, mas bandeiras de burgueses debochados em juventude retardada.
Pelo contrário, os mais desfavorecidos precisam de uma política clara de apoio à família, a mais antiga e segura forma de segurança social. Mas esta é a única medida omitida no palavroso programa do actual Governo socialista.
Finalmente, surge a velha opção da esquerda contra a religião.
Também aqui se trata, não de interesse dos pobres, mas de manias de intelectual pedante. Por causa desta irritação espúria contra a fé, a esquerda tem perseguido e até chacinado milhões de pobres e destruído a base cultural e social da sua vida.
Por todas estas razões mantenho a discordância. Mas sinto que não sou de esquerda por razões de esquerda.
João César das Neves (Professor de Economia na UCP)
2 Comments:
LOOL! Bem, depois deste texto tenho que assumir que também não sou de esquerda por razões de esquerda! A culpa é da esquerda!
Muito bem observado: "Não sou de esquerda por razões de esquerda".
A verdadeira preocupação social de João César das Neves leva-o a rejeitar as concepções esquerdistas como a alta intervenção do Estado na economia ou o "Estado-Providência".
Subscrevo por completo o que diz.
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