"A persistência do papagaio morto" por João César das Neves (DMS)
Um famoso número dos famosos humoristas britânicos Monty Python é o "papagaio morto" (série 1, progr. 8, 7/Dez./1969). Nele um cliente dirige-se a uma loja de animais protestando que a arara que acabara de comprar, e que traz numa gaiola, está morta. O vendedor tenta negar o óbvio, usando de múltiplos estratagemas para fingir que a ave, de uma raça rara, está só a dormir. O cliente vê-se forçado a bater com o bicho no balcão, gritando que está mesmo defunto. A política contemporânea está cheia de "papagaios mortos", que os dirigentes, contra toda a evidência, insistem que ainda mexem. As recentes declarações sobre a regionalização são um caso evidente.
O Governo de Sócrates, talvez por falta de problemas, lembrou-se agora de insistir numa das maiores tolices do seu antecessor Guterres. O Executivo pode ter-se esquecido, mas a 11 de Novembro de 1998 mais de 63% dos votantes rejeitaram categoricamente "a instituição em concreto das regiões administrativas". Isso passou-se num referendo em que se pronunciaram mais de 48% dos portugueses, o que ultrapassa a média das eleições europeias. Apesar disso, o actual Governo acaba de dar um piparote ao papagaio e grita "Mexeu-se! Vê, mexeu-se! Está vivo!"
O problema por detrás desta atitude é uma perversão da democracia. Terá já notado que na actual retórica política há expressões que desapareceram completamente. Mantêm-se, tão fervorosas como antes, as solenes profissões de fé democrática, mas deixaram de se ouvir frases como "servidor do povo" ou "cumpridor da vontade nacional". Embora continue a dizer-se que a população portuguesa manda no País, cada vez mais se sente que a opinião pública deve ser convencida, seduzida, manipulada, driblada, mas nunca cumprida. O político de sucesso não é o que faz o que o povo quer, mas o que convence o povo a aceitar o que ele quer. A democracia transforma-se assim numa ditadura que, de vez em quando, tem de fingir respeitar a maioria. Na regionalização, a imposição descarada do que o povo rejeitou é bem evidente.
O problema não é só português. O longo e torturado processo da Constituição Europeia mostra que também os países ricos insistem nos seus patéticos papagaios falecidos. Mas, onde quer que se manifeste, ele vem sempre da arrogância de um pequeno conjunto de iluminados que despreza a massa ignara. Não admira, pois, o crescente desprestígio europeu da classe política.
Em Portugal a questão é mais grave por duas razões. A primeira tem a ver com a dorida relação nacional com a democracia. A nossa cultura é corporativa por natureza.
Por isso, desconfiado fora do grupo de amigos, o povo saltita permanentemente entre a rebeldia fadista contra o Salazar recorrente e a submissão a um D. Sebastião salvador. Por cá nunca ninguém perde eleições, e o vencedor tem, logo a seguir, todos atrás de si.
Daí as dificuldades em implantar entre nós o sistema democrático baseado no fair play britânico. Não admira que os políticos, mesmo os que se julguem mais democráticos, acabem por desprezar os eleitores, só porque não os entendem.
A segunda dificuldade vem da situação actual, aliás frequente nas crises nacionais. O Governo vê-se na necessidade urgente de fazer reformas impopulares, para conseguir recuperar o País e o desenvolvimento.
A firmeza e a resistência contra os ataques são aqui decisivos.
Ora é fácil, nestas condições, confundir teimosia com força e tolice com reformas essenciais. Se os ministros são atacados quando tomam medidas virtuosoas e indispensáveis, como distinguem, no meio da revoada de críticas, aquelas que são justas e merecidas?
Assim, debaixo da solidez de decisões cruciais para a eficiência na saúde e justiça, a reestruturação da administração pública, modernização da educação e forças de segurança, surgem os monstruosos paquidermes brancos, tão finados como o psitacídeo dos Monty Python. A regionalização, como o aeroporto da Ota, o TGV e, em temas mais polémicos, a distribuição indiscriminada da "pílula do dia seguinte" e a liberalização absoluta do aborto e da procriação medicamente assistida são propostas tontas ou nocivas, impulsionadas com a mesma segurança e impassibilidade da necessária consolidação orçamental. Grande parte até são contraditórias com ela.
Quem tem opinião diferente da maioria tem o direito de a defender. Mas em democracia quem abandonar a vontade popular e, sobretudo, o bom-senso, cai no absurdo dos Monty Python.
João César das Neves (Professor Universitário)
2 Comments:
Excelente crítica. Como é habitual...
Muito bem! Este tipo é mesmo muito bom.
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